Cidade real maravilhosa
Marco Alexandre de Oliveira
O Rio de Janeiro é realmente uma “cidade maravilhosa”, como
diz a canção, “cheia
de encantos mil". O que encanta, no entanto, não são apenas as suas inúmeras
belezas, nem os seus inesquecíveis 450
anos de história, mas
os seus incríveis
contrastes, que revelam as incomensuráveis contradições desse
“coração” do Brasil.
Por um lado o mar, por outro as montanhas. Por
um lado a Zona Sul, por outro a Zona Norte. Por um lado o morro, por outro o
asfalto. Assim, entre a natureza e a cidade, o cosmopolita e o provinciano, a pobreza
e a riqueza, o Rio de Janeiro representa um entre-lugar,
por ser um lugar de várias
diferenças, e múltiplas
realidades.
Entre gente boa e gente ruim, os cariocas também apresentam os seus
contrastes marcantes, e as suas contradições significantes. Por um lado, se os
cariocas são “bonitos”, “bacanas”, “sacanas”, “dourados”, “modernos”, “espertos”
e “diretos”, como canta a gaúcha Adriana Calcanhotto, por outro lado, os
cariocas são igualmente feios, chatos, corretos, escuros, antiquados, ingênuos
e indiretos, como se pode observar.[1]
Então, se alguns cariocas “nascem bambas”, outros nascem sem ginga. Se uns “nascem
craques”, outros nascem pernas-de-pau. Uns “tem sotaque”, outros não falam
carioquês. Uns “são alegres”, outros são tristes. Uns “são atentos”, outros são
negligentes. Umas “são tão sexys”, outras são bem barangas. Uns “são tão
claros”, outros são bem sombrios. Assim, os cariocas podem ser tão finos quanto
grossos, tão chiques quanto cafonas, tão tranquilos quanto nervosos, tão
generosos quanto mesquinhos e/ou tão malandros quanto manés, sem que essas
características contrastantes, ou até contraditórias, sejam descaracterizadas.
Como estereótipos, as impressões podem ser tão verdadeiras quanto falsas. Até as constatações podem aparecer, às vezes, impressionantes. Por exemplo, o Rio de
Janeiro já foi
apontado como “a cidade
mais simpática do
mundo”, segundo uma pesquisa
realizada pela revista New Scientist,
que também
classificou a cidade como “uma das
mais violentas do mundo, notória por
sua taxa alta de criminalidade e seus incontáveis males sociais”.[2] Ao
mesmo tempo, parece que sobra antipatia e falta solidariedade na cidade, onde o
povo contraditoriamente (ou não) se une pela paz.
A justaposição dessas realidades tão
contrastantes caracterizaria o Rio de Janeiro como uma cidade “surreal”, na concepção do
francês André Breton, que escreveu que “o maravilhoso
participa obscuramente de uma classe de revelação geral, de que só nos
chega o detalhe”, como, por exemplo, as “ruínas” antigas ou os “manequins” modernos, ou qualquer outro “símbolo” que “comove a sensibilidade humana por
um tempo”.[3]
Seja entre o efêmero e o
eterno, seja entre a vida e a morte, o maravilhoso
então surge dos contrastes
e/ou das contradições,
assim como em “quadros que nos fazem sorrir” enquanto pintam a “inquietação humana”, segundo Breton. Deste modo, a “cidade
maravilhosa” que se (auto)retrata como “cartão postal” tropical, local de uma das sete maravilhas do mundo moderno,
revela a imagem contemporânea de
um ícone medieval, que abraça toda a baía e ilumina o mundo mundano com o seu coração sagrado, e sangrando.
Na realidade, o Rio de Janeiro é uma cidade “maravilhosa”, e se o
tropicalista Gilberto Gil cantou que o “Rio de Janeiro continua lindo”, o
surrealista Breton antes escreveu que “o maravilhoso é sempre
belo, qualquer maravilhoso é belo, só mesmo o maravilhoso é belo”.[4]
Mas o Rio de Janeiro não é uma cidade surreal, apesar de ser linda e
maravilhosa. Pelo contrário, é uma cidade real em suas diversas realidades.
Assim, dir-se-ia que o Rio de Janeiro é uma cidade real
maravilhosa.
Para o cubano Alejo Carpentier, que concebeu a
estética do “real maravilhoso”
latino-americano em contraste com a do “surrealismo” europeu, invocada na “descrença”, o maravilhoso “surge de uma inesperada
alteração da realidade (o
milagre), de uma revelação
privilegiada da realidade, de uma iluminação incomum ou que favorece singularmente as inadvertidas riquezas da
realidade, de uma ampliação das
escalas e categorias da realidade”.[5]
Proveniente de um certo “estado limite”, a “sensação” do maravilhoso é, antes
de tudo (ou nada), fundada em uma “fé” na realidade do maravilhoso:
é o
maravilhoso do real e não da imaginação, do concreto e não do
abstrato, da história e não da ficção. E se Carpentier presenciou esse fenômeno no Haiti, ele também percebeu que é, de fato, “patrimônio da América inteira”.
Enquanto os baianos Gilberto Gil e Caetano
Veloso contam como o “Haiti é aqui”,
no Brasil, o “real maravilhoso” encontra-se realizado
no Rio de Janeiro, patrimônio
cultural da humanidade, onde tanto os passos e as canções do samba, quanto as alegorias e as fantasias
do Carnaval, não
perderam o seu “caráter mágico ou invocatório”, mas ainda guardam “um profundo sentido ritual”, criando-se em
torno deles “todo um processo iniciático,” como Carpentier diria.[6]
Sem lembrar dos jogos de futebol, das novelas das nove, das noites de boemia e
das missas de domingo.
Assim, repetir-se-ia que o Rio de Janeiro, onde
a história se (con)funde com o
mito para revelar uma realidade maravilhosa, pela “virgindade da paisagem”
deflorada pelos homens, pela “formação” dessa cidade grande onde não há um
grande rio, pela “ontologia” de ser a Cidade de São Sebastião, santo
católico sincretizado orixá iorubá, pela “presença fáustica” dos índios desalojados e dos negros descriminados, pela “revelação” que consiste em sua constante dissimulação, pelas “fecundas mestiçagens” que ainda proporciona, está “muito longe de ter esgotado seu caudal de
mitologias”.[7]
Para concluir, uma pergunta de Carpentier poderia
ser reformulada na seguinte questão: Mas o que é a história do Rio de Janeiro senão “uma crônica do real maravilhoso?” Há de se declarar que o Rio de Janeiro, este entre-lugar único e diferente, esta metrópole pré-pós-moderna,
ex-capital da nação que
era tanto império quanto
colônia, é realmente uma cidade maravilhosa, cheia de contrastes
mil. Uma cidade maravilhosa, contradição do Brasil....
[1] Adriana Calcanhotto, "Cariocas", A fábrica
do poema (1994). http://www.adrianacalcanhotto.com/sec_musicas_letra.php?id=14
[3] André Breton, "Manifesto do Surrealismo" (1924). http://www.culturabrasil.org/breton.htm
[4] Gilberto Gil, "Aquele abraço", Gilberto Gil (1969). http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_interno.php?id=4;
André Breton,
"Manifesto do Surrealismo" (1924). http://www.culturabrasil.org/breton.htm
[5] Alejo Carpentier, "De lo real maravilloso americano" (1967). http://www.literatura.us/alejo/deloreal.html
[6] Caetano Veloso e Gilberto Gil, "Haiti", Tropicália 2 (1973). http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_interno.php?id=32;
Alejo Carpentier,
"De lo real maravilloso americano" (1967). http://www.literatura.us/alejo/deloreal.html
[7] Alejo Carpentier, "De lo real maravilloso americano" (1967). http://www.literatura.us/alejo/deloreal.html