Wednesday, April 1, 2015

Trânsito intransitável

Trânsito intransitável

Marco Alexandre de Oliveira


O trânsito tem sinais de pânico. Ao que parece, a sensação de que tudo está “parado” é compartilhada por quase todos os que transitam diariamente entre as ruas do Rio de Janeiro, onde é impossível se deslocar por qualquer local da Cidade Maravilhosa sem se sentir “preso” ao parar e se deparar com essa cena horrenda. Que maravilha!

Mas o trânsito, em princípio, é transitório. Do latim transitu, a palavra trânsito se refere a “ação ou efeito de transitar” e significa “passagem” e/ou “movimento”. Como metáfora, o termo também pode ser sinônimo de “morte” enquanto “passamento”.[1] Nesse sentido, o trânsito representa a transição entre o temporário e o permanente, o efêmero e o eterno. Poder-se-ia concluir que a própria vida se define como ser e/ou estar em trânsito.

O trânsito do Rio, diga-se de passagem, não é passageiro, apesar de ser movimentado. De fato, os estudos apontam que a cidade tem não somente o pior trânsito do Brasil, mas um dos piores do mundo. Segundo pesquisas recentes, os cariocas perdem mais de uma hora em “engarrafamentos” para cada hora dirigida no horário de pico.[2] Ao total, as estatísticas calculam uma média de 100 horas perdidas por ano![3] Além de tempo, se perde dinheiro, oportunidades e até cabeças nos inúmeros “congestionamentos”, que não permitem que o tráfego flua e que deixam as ruas entupidas e os motoristas irritados. Assim, os diversos “transtornos” causados pelo trânsito afetam não apenas a mobilidade urbana, mas também a personalidade humana.

De acordo com um estudo que faz parte da Pesquisa Mundial sobre Saúde Mental, iniciativa da Organização Mundial da Saúde (OMS), a prevalência dos “transtornos mentais” na Região Metropolitana de São Paulo é a mais alta entre todos os países pesquisados. Em parte, essa “alta prevalência” (30%) se deve à “urbanicidade”, pois quanto mais exposição à “vida urbana”, tanto mais “transtornos” como o famoso “transtorno explosivo intermitente”, que não por coincidência é “típico de situações de estresse no trânsito”.[4] Explica-se, desse modo, o pavio curto dos motoristas da capital fluminense que, sem deixar que os paulistas levem qualquer vantagem, também apresentam seus cada vez mais frequentes ataques de fúria pelas ruas da cidade. Para um especialista, o “estresse excessivo no trânsito” pode abalar a saúde e desencadear várias doenças físicas e “patologias mentais”.[5] Os engarrafamentos, assim, acabam servindo como “gatilhos para alterar o comportamento” fisiológico e psicológico, tanto dos motoristas quanto dos passageiros. O trânsito, portanto, deixa os cariocas literalmente, e figurativamente, alterados.

O trânsito, por sinal, está em transe. Mas a solução para o problema evidentemente não é “vá de ônibus”, como recomenda a prefeitura, que por sua vez está atrapalhando ao invés de estar trabalhando para melhorar a situação, com as suas obras sem parar que param tudo de uma vez. Segundo o mesmo especialista citado acima, “o pior caso” de sofrimento devido ao trânsito é o do motorista de ônibus, cuja profissão representa uma “atividade insalubre e de periculosidade.” Imagine passar por esse estresse o dia todo e todo dia! Certamente, não se deve encorajar a população a ser conduzida pelos motoristas de coletivos, dos quais cerca de 15% aparentemente têm “alguma patologia”. No caso mais extremo, há o motorista “sociopata”, aquele que “faz gestos obscenos, xinga, anda colado na traseira do outro carro, acende farol alto, buzina” e também é bem capaz de “saltar do ônibus e agredir, até matar.”[6] Os acidentes assim provocados pelos chamados “ônibus assassinos” são assustadores mesmo, como demonstra a recente morte do agente de trânsito que foi atropelado intencionalmente no Centro do Rio. Sem comentar as demais fatalidades que, na verdade, indicam uma série de tragédias anunciadas.

Para contornar os transtornos do trânsito, não adianta ir de carro ou de ônibus. Nem de moto, e muito menos de bicicleta. Apesar da aparente agilidade, andar de motocicleta é uma alternativa extremamente perigosa, e a taxa de mortalidade por acidentes de moto é absurdamente alta. De acordo com as pesquisas, o Brasil é "o segundo país do mundo em número de vítimas fatais de acidentes de moto".[7] Em parte, os acidentes se devem ao fato de o Brasil ser um dos poucos países a permitir que as motos trafeguem entre os outros veículos, nos chamados “corredores da morte”. Com elevadas chances de acidentes que variam de leves a graves, o uso de moto se torna uma opção arriscada ou até inviável para quem preza a segurança no trânsito. Do mesmo modo, andar de bicicleta apresenta perigos semelhantes, embora menos preocupantes. Os desafios para os ciclistas são outros, pois as poucas ciclovias são pouco respeitadas, e tanto os carros quanto os ônibus ignoram a sinalização, se houver. Sem lembrar das motocicletas que se acham uma espécie de bicicleta motorizada e invadem as pistas designadas! A bicicleta pode ser, então, um veículo útil para passear e/ou se exercitar, mas não para ir trabalhar.

O trânsito, afinal, está sem saída. Só resta sair das ruas e entrar nos trilhos. No entanto, transitar de metrô ou trem é uma opção que infelizmente não vale para todos, já que os especialistas observam que no Rio de Janeiro apenas “17% da população é atendida pelas linhas de trem e metrô”[8]. A cidade, apesar de integrar uma grande região metropolitana com uma população de aproximadamente 12 milhões de pessoas, a segunda maior do Brasil e uma das maiores do mundo, tem apenas duas linhas de metrô, que em parte dos seus percursos até dividem o mesmo trilho. Para efeitos de comparação, o Grande Rio tem o dobro da população da área metropolitana de Barcelona, e a metade da extensão de metrô. A construção bastante aguardada de uma nova Linha 4, que serviria apenas como extensão da Linha 1, seria uma empreitada totalmente racional se também não fosse absolutamente insólita, devida a notória falta de uma Linha 3, caso único no mundo. Por sua vez, o chamado “metrô na superfície” (i.e. os ônibus especiais que só atendem aos privilegiados usuários da Zona Sul, enquanto os negligenciados da Zona Norte pagam extra pela chamada “integração” via ônibus expressos) não passa de uma mera ilusão. Simplesmente não há como confundir um ônibus com um trem, nem mesmo na imaginação! Finalmente, além do custo relativamente alto da passagem, quem consegue embarcar no metrô e/ou trem sofre diariamente com as constantes paradas, a falta de ar-condicionado, a superlotação das composições e, no caso específico dos trens, os frequentes e recorrentes problemas que incluem atrasos, apagões, panes e até descarrilamentos por causa da má conservação dos trens e trilhos, e da má gestão da própria concessionária. Assim, a Supervia acaba se superando apenas com serviços super-ruins.   

Assinalo, por fim, que o trânsito é intransitável na Cidade Maravilhosa. Anda parada e para andando. Daqui em diante, somente adianta andar a pé! Realizar-se-ia, desse modo, o lema escrito por Rubem Fonseca no seu famoso conto "A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro" (1992): solvitur ambulando. Traduzindo: se resolve andando. Andar com pé eu vou, então, assim como o protagonista da história, o andarilho Augusto cujo nome real é Epifânio, que acredita que "ao caminhar pensa melhor, encontra soluções para os problemas".[9] Desse modo, passa por epifanias e/ou descobertas tão profundas quanto rasteiras durante as suas andanças por uma cidade transfigurada em prosa, se não em verso. Para solucionar os problemas do trânsito, concluo: abaixo o transporte público e particular, e salve os transeuntes! Solvitur ambulando....


Marco Alexandre de Oliveira é professor adjunto do Departamento de Letras da PUC-Rio, onde ensina cursos de Literatura e Cultura Americana e de Língua Inglesa. É também o nome real do Gringo Carioca, poeta e autor do livro Reflexos e reflexões (Oito e meio, 2014).





[9] Rubem Fonseca, "A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro" (1992).

Sunday, March 1, 2015

Cidade real maravilhosa

Cidade real maravilhosa

Marco Alexandre de Oliveira


O Rio de Janeiro é realmente uma “cidade maravilhosa”, como diz a canção, “cheia de encantos mil". O que encanta, no entanto, não são apenas as suas inúmeras belezas, nem os seus inesquecíveis 450 anos de história, mas os seus incríveis contrastes, que revelam as incomensuráveis contradições desse “coração” do Brasil.

Por um lado o mar, por outro as montanhas. Por um lado a Zona Sul, por outro a Zona Norte. Por um lado o morro, por outro o asfalto. Assim, entre a natureza e a cidade, o cosmopolita e o provinciano, a pobreza e a riqueza, o Rio de Janeiro representa um entre-lugar, por ser um lugar de várias diferenças, e múltiplas realidades.

Entre gente boa e gente ruim, os cariocas também apresentam os seus contrastes marcantes, e as suas contradições significantes. Por um lado, se os cariocas são “bonitos”, “bacanas”, “sacanas”, “dourados”, “modernos”, “espertos” e “diretos”, como canta a gaúcha Adriana Calcanhotto, por outro lado, os cariocas são igualmente feios, chatos, corretos, escuros, antiquados, ingênuos e indiretos, como se pode observar.[1] Então, se alguns cariocas “nascem bambas”, outros nascem sem ginga. Se uns “nascem craques”, outros nascem pernas-de-pau. Uns “tem sotaque”, outros não falam carioquês. Uns “são alegres”, outros são tristes. Uns “são atentos”, outros são negligentes. Umas “são tão sexys”, outras são bem barangas. Uns “são tão claros”, outros são bem sombrios. Assim, os cariocas podem ser tão finos quanto grossos, tão chiques quanto cafonas, tão tranquilos quanto nervosos, tão generosos quanto mesquinhos e/ou tão malandros quanto manés, sem que essas características contrastantes, ou até contraditórias, sejam descaracterizadas.

Como estereótipos, as impressões podem ser tão verdadeiras quanto falsas. Até as constatações podem aparecer, às vezes, impressionantes. Por exemplo, o Rio de Janeiro já foi apontado como “a cidade mais simpática do mundo”, segundo uma pesquisa realizada pela revista New Scientist, que também classificou a cidade como “uma das mais violentas do mundo, notória por sua taxa alta de criminalidade e seus incontáveis males sociais”.[2] Ao mesmo tempo, parece que sobra antipatia e falta solidariedade na cidade, onde o povo contraditoriamente (ou não) se une pela paz.

A justaposição dessas realidades tão contrastantes caracterizaria o Rio de Janeiro como uma cidade “surreal”, na concepção do francês André Breton, que escreveu que “o maravilhoso participa obscuramente de uma classe de revelação geral, de que só nos chega o detalhe”, como, por exemplo, as “ruínas” antigas ou os “manequins” modernos, ou qualquer outro “símbolo” que “comove a sensibilidade humana por um tempo”.[3] Seja entre o efêmero e o eterno, seja entre a vida e a morte, o maravilhoso então surge dos contrastes e/ou das contradições, assim como em “quadros que nos fazem sorrir” enquanto pintam a “inquietação humana”, segundo Breton. Deste modo, a “cidade maravilhosa” que se (auto)retrata como “cartão postal” tropical, local de uma das sete maravilhas do mundo moderno, revela a imagem contemporânea de um ícone medieval, que abraça toda a baía e ilumina o mundo mundano com o seu coração sagrado, e sangrando.

Na realidade, o Rio de Janeiro é uma cidade “maravilhosa”, e se o tropicalista Gilberto Gil cantou que o “Rio de Janeiro continua lindo”, o surrealista Breton antes escreveu que “o maravilhoso é sempre belo, qualquer maravilhoso é belo, só mesmo o maravilhoso é belo”.[4] Mas o Rio de Janeiro não é uma cidade surreal, apesar de ser linda e maravilhosa. Pelo contrário, é uma cidade real em suas diversas realidades. Assim, dir-se-ia que o Rio de Janeiro é uma cidade real maravilhosa.

Para o cubano Alejo Carpentier, que concebeu a estética do “real maravilhoso” latino-americano em contraste com a do “surrealismo” europeu, invocada na “descrença”, o maravilhoso “surge de uma inesperada alteração da realidade (o milagre), de uma revelação privilegiada da realidade, de uma iluminação incomum ou que favorece singularmente as inadvertidas riquezas da realidade, de uma ampliação das escalas e categorias da realidade”.[5] Proveniente de um certo “estado limite”, a “sensação” do maravilhoso é, antes de tudo (ou nada), fundada em uma “fé” na realidade do maravilhoso: é o maravilhoso do real e não da imaginação, do concreto e não do abstrato, da história e não da ficção. E se Carpentier presenciou esse fenômeno no Haiti, ele também percebeu que é, de fato, “patrimônio da América inteira”.

Enquanto os baianos Gilberto Gil e Caetano Veloso contam como o “Haiti é aqui”, no Brasil, o “real maravilhoso” encontra-se realizado no Rio de Janeiro, patrimônio cultural da humanidade, onde tanto os passos e as canções do samba, quanto as alegorias e as fantasias do Carnaval, não perderam o seu “caráter mágico ou invocatório”, mas ainda guardam “um profundo sentido ritual”, criando-se em torno deles “todo um processo iniciático,” como Carpentier diria.[6] Sem lembrar dos jogos de futebol, das novelas das nove, das noites de boemia e das missas de domingo.

Assim, repetir-se-ia que o Rio de Janeiro, onde a história se (con)funde com o mito para revelar uma realidade maravilhosa, pela “virgindade da paisagem” deflorada pelos homens, pela “formação” dessa cidade grande onde não há um grande rio, pela “ontologia” de ser a Cidade de São Sebastião, santo católico sincretizado orixá iorubá, pela “presença fáustica” dos índios desalojados e dos negros descriminados, pela “revelação” que consiste em sua constante dissimulação, pelas “fecundas mestiçagens” que ainda proporciona, está “muito longe de ter esgotado seu caudal de mitologias”.[7]

Para concluir, uma pergunta de Carpentier poderia ser reformulada na seguinte questão: Mas o que é a história do Rio de Janeiro senão “uma crônica do real maravilhoso?” Há de se declarar que o Rio de Janeiro, este entre-lugar único e diferente, esta metrópole pré-pós-moderna, ex-capital da nação que era tanto império quanto colônia, é realmente uma cidade maravilhosa, cheia de contrastes mil. Uma cidade maravilhosa, contradição do Brasil....


Marco Alexandre de Oliveira é professor adjunto do Departamento de Letras da PUC-Rio, onde ensina cursos de Literatura e Cultura Americana e de Língua Inglesa. É também o nome real do Gringo Carioca, poeta e autor do livro Reflexos e reflexões (Oito e meio, 2014).




[1] Adriana Calcanhotto, "Cariocas", A fábrica do poema (1994). http://www.adrianacalcanhotto.com/sec_musicas_letra.php?id=14
[3] André Breton, "Manifesto do Surrealismo" (1924). http://www.culturabrasil.org/breton.htm
[4] Gilberto Gil, "Aquele abraço", Gilberto Gil (1969). http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_interno.php?id=4;
André Breton, "Manifesto do Surrealismo" (1924). http://www.culturabrasil.org/breton.htm
[5] Alejo Carpentier, "De lo real maravilloso americano" (1967). http://www.literatura.us/alejo/deloreal.html  
[6] Caetano Veloso e Gilberto Gil, "Haiti", Tropicália 2 (1973). http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_interno.php?id=32;
Alejo Carpentier, "De lo real maravilloso americano" (1967). http://www.literatura.us/alejo/deloreal.html  
[7] Alejo Carpentier, "De lo real maravilloso americano" (1967). http://www.literatura.us/alejo/deloreal.html